sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Maria Auxiliadora Ribeiro Gomes(Viçosa-MG) - DONA EUROPA E SUAS FILHAS Frei Betto


           (Compilação)


DONA EUROPA E SUAS FILHAS Frei Betto


        Dona Europa livrou-se, há séculos, da tutela do Senhor Feudal, ao qual  esteve submetida ao longo de mil anos. Cabeça feita por Copérnico,  Galileu e Descartes,
casou-se com o Senhor Moderno Liberal e montou casa no bairro da Democracia.


        Dona Europa puxou o tapete dos nobres, deu um chega pra lá  no papa e elegeu governos constitucionais que trocaram a permuta pela  moeda, evitaram fazer
uso de mão de obra escrava, transformaram antigos  camponeses em operários merecedores de salários.


        Dona Europa passou a nutrir  ambições desmedidas. Fitou com olho gordo no imenso mapa-múndi que  enfeitava a sala de sua casa. Quantas riquezas naquelas terras
habitadas por nativos ignorantes! Quantas áreas cultiváveis cobertas pela  exuberância paradisíaca da natureza!


        Dona Europa lançou ao mar sua frota em busca de ricas  prendas situadas em terras alheias. Os navegantes invadiram territórios, saquearam aldeias, disseminaram
epidemias, extraíram minerais  preciosos, estenderam cercas onde tudo, até então, era de uso comum.


        Dona Europa praticou, em outros povos, o que se negava a  fazer na própria casa: impôs impérios, reinados e ditadores; inibiu o  acesso à cultura letrada;
implantou o trabalho escravo; proibiu a  industrialização; internacionalizou normas econômicas que lhe eram favoráveis, em detrimento dos povos alhures.


        Um dos povos de além-mar dominados por Dona Europa ousou rebelar-se em  1776, emancipou-se da tutela e se tornou mais poderoso do que ela – o  Tio Sam.

        O professor Maquiavel ensinou à Dona Europa que, quando não  se pode vencer o inimigo, é melhor aliar-se a ele. Assim, ela  associou-se a Tio Sam para exercer
domínio sobre o mundo.


        Dona Europa e Tio Sam acumularam tão espantosa riqueza, que cederam à  ilusão de que seriam eternos o luxo e a ostentação em que viviam. Tudo  em suas casas
era maravilhoso. E suas moedas reluziam acima de todas as  outras.


        Ora, não há casa sem alicerce, árvore sem raiz, riqueza sem  lastro. Para manter o estilo de vida a que se acostumaram, Dona Europa e Tio Sam gastavam mais
do que podiam. E, de repente, constataram que se  encontravam esmagados sob dívidas astronômicas. O que fazer?


        A primeira medida foi a adotada em turbulência de viagem de avião:  apertar os cintos. Não deles, óbvio. Mas de seus empregados: despediram  alguns, reduziram
os salários de outros, deixaram de consumir produtos  importados. Assim, a crise da dupla se alastrou mundo afora.


        Dona Europa e Tio Sam não são burros. Sabem onde mora o  dinheiro: nos bancos. Tio Sam, ao ver o rombo em sua economia, tratou de rodar a maquininha da Casa
da Moeda e socorreu os bancos com pelo menos US$ 18 trilhões.


        Dona Europa tem várias filhas. Segundo ela, algumas não  souberam administrar bem suas fortunas. A formosa Grécia parece ter  perdido a sabedoria. Gastou
muito mais do que podia. Os mesmo aconteceu com a sedutora Itália, a encantadora Espanha e a inibida  Irlanda.


        Como o cofre da família é de uso comum, Dona  Europa se cobriu de aflições. Puniu as filhas gastadoras e apelou à mais rica de todas, a severa Alemanha,
para ajudá-la a socorrer as  endividadas.

        A Alemanha é manhosa. Disse que só socorre as irmãs se puder controlar os gastos delas. O que significa cortar as asinhas das moças – o que em política equivale
a anular a soberania.


         Soberana hoje, na casa de Dona Europa, só a pudica Alemanha. O resto da  família é dependente e está de castigo. A mais cheirosa das filhas, a  França,
anda rebelde. Após aparecer de mãos dadas com a Alemanha, agora  que arrumou namorado novo encara a irmã com desconfiança.


        Nós, aqui do sul do mundo, que ainda não cortamos o cordão umbilical com Tio Sam e Dona  Europa, corremos o risco de ficar gripados se Dona Europa continuar
a  espirrar tanto, alérgica ao espectro de um futuro tenebroso: a agonia e  morte do deus Mercado, cujos fiéis devotos mergulharam em profunda crise de descrença.



Frei Betto é escritor, autor de “Calendário do Poder” (Rocco)
--

Nenhum comentário:

Postar um comentário