Reflexões sobre o Alzheimer de Geraldo.
O Filme EU É GERALDO foi resultado de um trabalho de pesquisa de Erick
Leite, com acompanhamento da equipe da Café Pingado Filmes, nas entrevistas com
os conhecidos do grande cineasta rio-branquense.
O que a princípio parecia ser o relato de uma vida de artista apaixonado
pelo cinema, acabou deixando bases para reflexões sobre algo mais profundo e
curioso: é senso comum que essa doença raramente alcança pessoas habituadas a
atividades intelectuais, mais precisamente a prática da música e da leitura. E
Geraldo, na sua intensa e extensa biografia, o que mais fazia era ler e
escrever, tanto como crítico de cinema, como de história e de arte em geral, que
dominava profundamente sobre cada época e estilo específico. E parecia buscar ou
descobrir em cada tema a razão de mais um filme.
Na sua paixão pelo cinema, mostrava-se grande cineasta, como cinéfilo
insaciável. Isto ficou evidente na revelação
de que ia à mesma locadora trocar em torno de dez filmes de cada vez, que “consumia”
em pouco tempo. Daí a razão de Dona Elza(esposa) e de Laurinha(filha) dizerem
que ele só tinha tempo para cinema. Como
homem íntegro, pensamos, Geraldo amava a família, mas era apaixonado pelo
cinema. Na família a razão. No cinema a emoção.
Geraldo, Laurinha e Dona Elza. À sua direita, os irmãos gêmeos Ignacchitti e Jeová Benati, na casa de José Luiz Lopes Gomes(2006).
Em um raciocínio paralelo, parece-nos que o cérebro humano dispõe de
mecanismos para nos amenizar algum trauma.
Por exemplo, quando alguém sofre um grave acidente de carro e sobrevive,
na maioria das vezes passa por uma amnésia parcial, regressiva até o momento tranqüilo
que nada tenha a ver com o acidente. As
lembranças do choque e suas prováveis causas seriam muito fortes, para com elas
conviver sem perturbações e dores emocionais, além daquelas motivadas pelos
ferimentos na carne e suas sequelas. Essa amnésia seria como desligar parte da
memória para evitar um “curto circuito” nas funções do organismo como um todo.
A memória temporariamente perdida, volta à medida que as causas da perda vão
sendo absorvidas com os novos desafios da vida.
Que relação isto tem a ver com o Alzheimer do Geraldo?
Na sua paixão pelo cinema, provavelmente ele não percebia que a filha
estava crescendo e a esposa se sentia carente de sua presença física e da sua
atenção companheira.
Quem sabe se, de uma hora para outra, ele percebe que poderia estar
perdendo a filha para a vida, ao chegar à idade adulta e deixar a esposa
solitária, sem ter dado a elas o que lhes haveria de melhor: o seu carinho, a
atenção, a curtição?
Quantas vezes teria chamado Dona Elza para ir ao cinema?
Quantas vezes teria se lambuzado com Laurinha em um naco de sorvete?
Pensamentos assim podem tê-lo assaltado de uma hora para outra.
Se tiver acontecido, a causa, o “acidente” teria sido o cinema, que
sempre o tirou de quem mais ele amava. E
lhe estaria tirando, na frieza do tempo, suas amadas esposa e filha, porque os
ponteiros do relógio não param, nem esperam por ninguém.
Se for assim, os filmes a produzir, ou os outros para o próprio consumo podem
virar o interesse pelo avesso. Do avesso
a aversão. Se perder o interesse, aquilo
que ele só queria ver e fazer, pode não querer mais. Se não quer mais, não quer
nem lembrar... quer esquecer... pode ser para amenizar um sentimento de
culpa, que na verdade não tem. Foi
simplesmente uma paixão, muito forte como um acidente dolorido e doloroso,
difícil de suportar. Pensar ter ferido
as pessoas amadas é o maior dos sofrimentos. Não se pode voltar o calendário,
Ele mesmo disse: “Não se deve voltar ao passado. É muito perigoso”.
Paris: "Não se deve voltar ao passado.... é muito perigoso"
Já que a Consciência pesa, o Consciente
empurra as lembranças para os porões do Inconsciente. Seria uma fuga involuntária, mas
inevitável. Mal de Alzheimer seria um
agravante de amnésia, ou ainda estaria na fase da amnésia? Se for, menos mal.
Poderá trazer a memória de volta, porque os neurônios estarão vivos, desde que
o tempo alivie o sentimento de culpa, se houver. Dependerá muito das pessoas
envolvidas e do ambiente que se crie ao seu redor. Pode ser até que valha a pena incentivar o
seu amor ao cinema, a conviver com as lembranças do passado, com o tempo
perdido e com novos sonhos no presente para realizações futuras.
Quem sabe sua memória esteja apenas adormecida, e não perdida, a
depender somente de estímulos que o reanimem a ir à locadora, e a planejar os filmes
que desejou e não realizou?
(Franklin Netto)
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